1.4.08

Dia da Mulher; Vítimas de escalpelamento
Por Correio Braziliense - DF
25 de fevereiro de 2008
Levantamento mostra que acidente em que o couro cabeludo da vítima é arrancado pelo eixo do motor de barcos é mais comum do que se pensava. Por causa dos cabelos longos, mulheres são as mais Uma mobilização envolvendo comunidades ribeirinhas, secretários estaduais, parlamentares e membros do governo federal está sendo costurada para minimizar o drama social das vítimas de escalpelamento. São pessoas, quase sempre mulheres, que têm o couro cabeludo arrancado pelos eixos giratórios de embarcações improvisadas que muitas vezes servem como único meio de transporte local. O acidente, vinculado até então a cidades da Amazônia, é mais comum do que se pensa. Levantamento da Defensoria Pública da União mostra notificação de casos em 24 estados, de 2000 a 2006.

A Defensoria, que realiza um projeto itinerante de conscientização em comunidades ribeirinhas, tomou como base os atendimentos médicos prestados pelo Sistema Único de Saúde a vítimas de escalpelamento no país inteiro. No total, foram 9 mil procedimentos em seis anos. O equivalente a 4,1 atendimentos por dia. A defensora pública da União Luciene Strada pondera que a conta não se trata de número de casos. “Uma pessoa pode ser atendida mais de uma vez. Ainda assim, a marca de 9 mil procedimentos indica um universo de vítimas muito maior do que imaginávamos”, destaca.


Maria Trindade Gomes conhece de perto a tragédia. Aos sete anos, viajava num barco na cidade paraense de Portel, a 650km da capital Belém, quando o balanço das águas derrubou a garota no chão. Em fração de segundos, os cabelos de Maria se enroscaram no eixo que fica exposto rente à água, girando a 1800 rotações por minuto. Ela teve o couro cabeludo completamente arrancado.

Ficou seis anos internada e, quando finalmente pôdesair do hospital, caiu em depressão. Devido à aparência deixada pelo acidente, é comum que as vítimas se isolem e desenvolvam problemas psicológicos. Há menos de um ano, Maria conseguiu forças para tocar a vida. Ela integra a Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia. “Não tive infância, não consegui estudar, ninguém aceita a gente. É muito difícil lidar com o preconceito”, diz Maria, hoje com 39 anos.

A fiscalização nos rios da Amazônia, onde a população paga cerca de R$ 0,50 para se deslocar em barcos familiares, é feita pela Marinha. Mas o número expressivo de embarcações, são cerca de 30 mil só no estado do Pará, conforme estimativa da Capitania dos Portos da Amazônia Ocidental, dificulta as inspeções. Para evitar a tragédia, bastaria que os donos dos barcos colocassem uma proteção nos eixos. “Mas eles simplesmente não se interessam em fazer isso, é uma questão cultural”, afirma Maria.

Engenheiros do Ministério do Trabalho estiveram na Região Norte para verificar como cobrir o eixo que causa o escalpelamento da melhor maneira possível. Estão sendo preparados 8 mil kits de proteção, a R$ 100 cada, com dinheiro do governo do Amapá e comrecursos garantidos também por parlamentares da Amazônia, para serem doados a donos de embarcações do estado.

Só no Amapá, a Secretaria de Políticas para as Mulheres já identificou cerca de 1.400 vítimas de escalpelamento. “Como há uma folga entre o eixo giratório e o barco, é dado a crianças e mulheres a tarefa de tirar a água que entra. Daí elas serem as maiores vítimas, além da questão do cabelo comprido”, explica a cirurgiã plástica Zineide Alves de Souza, do Hospital de Emergência do Amapá.

Problema generalizado

Levantamento minucioso da Defensoria Pública da União (DPU), com base em registros do SUS, obteve dados estarrecedores sobre a ocorrência de escalpelamentos em embarcações no país:

Há vítimas em 24 unidades da federação, e não apenas em cidades da Região Norte

Os estados do PA, PR, BA, MA, MG, RS, SP, PI, TO e ES são os mais problemáticos. Realizaram, cada um deles, mais de 40 atendimentos médicos a escalpelados, entre 2000 e 2006

No Brasil, no mesmo período, foram cerca de 9 mil procedimentos no SUS

Só na semana passada, no Pará, quatro casos foram registrados

Fonte: DPU e Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia

Atendimento é precário

Em 26 anos de trabalho, com 300 casos de escalpelamento tratados, a cirurgiã Zineide Alves de Souza lamenta a penúria do Sistema Único de Saúde (SUS). “Converso com colegas do Brasil inteiro e a situação é a mesma: falta instrumental básico para tratar os pacientes”, diz a médica. Na ausência de lâminas adequadas para retirar a pele do paciente que vai ser enxertada, ela usa giletes.

Outro instrumento que falta na rede pública é o expansor, espécie de bolsa de silicone que expande o couro cabeludo da vítima que foi preservado. “Passamos anos pedindo um expansor”, reclama Zineide. Conseguir perucas de silicone é outro problema. “Não é possível fazer implante de cabelo nessas pessoas, pois o que resta é osso e a pele enxertada”, explica a cirurgiã.

O Ministério da Saúde se comprometeu, em documento elaborado no encontro da semana passada com representantes das vítimas de escalpelamento, a adotar algumas medidas. A Coordenação de Alta e Média Complexidade definiu como prioridade no atendimento aos escalpelados organizar e expandir o serviço médico nos estados do Norte, qualificar profissionais, contribuir em programas de prevenção dos acidentes e garantir transporte às vítimas, que muitas vezes morrem antes de chegar a um pronto-socorro. O dia 28 de agosto foi escolhido pelas vítimas para ser o Dia Nacional de Combate e Prevenção do Escalpelamento.

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